24.12.11

o quereres


Vim o caminho todo a olhar uma garrafa que balançava para trás e para frente conforme o arranque e as paragens. Ao meu lado (e talvez longe de mim), um rapaz trocava de casaco com outro, falavam uma língua qualquer, eram palavras que não conhecia. De frente para mim, vinha um casal, alheios a tudo o que se passava, vinham a lutar contra o sono desde que a viagem começou (qual viagem?), iam abrindo os olhos a cada paragem, sorriam um para o outro, e olhavam para o filho que vinha num carrinho de bebe vermelho preso nos pés da mãe. Mais tarde, entrou um rapaz e sentou-se perto de mim. A música ouvia-se, mesmo ele estando longe de mim (mesmo ele estando tão perto de mim). Nada parecia afectá-lo. Isolou-se, como de resto, todos se isolam à aquela hora (a qualquer hora) naquele tipo de viagens. Vinha atento à garrafa (qual garrafa?), era uma garrafa de água. Tinha dentro dela, um papel branco com letras escritas à mão. Podia ser uma mensagem. Podia ser aquela pessoa, aquela do outro dia (aquela pessoa que tu conheces), podia ser uma pessoa qualquer desde que escrevesse algo de interessante. A viagem já ia a mais de metade quando adormeci (a viagem já ia a mais de metade quando aquela pessoa apareceu). Sentou-se ao meu lado. Gostaste? Perguntou. Gostei? Não sei do que é que estás a falar. Nem sei se te conheço. Cruzou a perna, e sorriu. Não tardou muito a que houvesse outra pergunta. Eu perguntei-te se gostas-te de me ver. Gostaste? Acordei sobressaltado. O casal tinha desaparecido, e o rapaz da música também. Os outros dois, aqueles que trocavam de casaco, estavam agora a rir. Um deles pediu um cigarro, e outro sem querer (por querer) parte o cigarro. Desatou a rir, era o último, mostrou a caixa enquanto soltava gargalhadas. Já nem aquela garrafa lá estava. A garrafa. Pois, aquela garrafa, já me tinha esquecido dela. Havia agora um sujeito demasiado longe de mim. Estava a olhar pela janela enquanto consultava o telemóvel de um em um minuto. Havia ainda uma outra senhora perto de mim, de cabelo castanho e olhos verdes (verdes como os teus, verdes como os nossos). Ela estava distante daquela viagem, tal como eu. Entra agora uma senhora de idade, baixa, de cabelo apanhado, muito carregada de maquilhagem. Sentou-se de frente para mim, e veio o resto do caminho a maquilhar-se enquanto fingia que falava ao telemóvel com o senhor Manuel. Dei comigo a pensar em ti (talvez seja um erro pensar em ti) quando já tinha saído de uma viagem e caminhava para outra. Fiz de conta que não estava a ser seguido. Fiz de conta tropeçar para que olhasses para mim quando me cruzei contigo antes de entrar no teatro. Parece ridículo? Talvez, e talvez nem tudo o que acontece pareça ridículo. Pode haver uma encenação. Fiz de conta reparar num mero anúncio (sim, aquele estúpido anúncio), só para que olhasses para ele. E olhaste porque eu tinha olhado para aquele anúncio. Bastou que eu desse um ênfase ao olhar para que tu olhasses logo a seguir. E olhaste, sabes? Eu sei que olhaste. Eu vi-te a olhar pelo reflexo do vidro (qual vidro?). Olha! Disse num tom de meter conversa. Podes dizer-me as horas? Acrescentou. Não tenho horas, acabei de sair de uma viagem. Fumas? Não tenho tabaco. E dinheiro? Tens? Não, não tenho dinheiro! (São 1:28, venho de Lisboa. Fui ver um espectáculo e acabei agora de sair de uma viagem. Sim, fumo. E sim, tenho dinheiro). Eu não quero fazer-te mal (afinal a viagem parece terminar aqui, não?), precisava de algum dinheiro, coisa pouca. Sem responder, meti-me no carro e tranquei as portas. O telemóvel toca. Eu queria dizer que precisava de dinheiro, e que não gostei que me deixasses à porta do teatro. Desliguei. Voltaram a ligar. Olá, disse. Olá, respondi com um sorriso. Cheguei agora ao carro, estou prestes a ir para casa (cheguei agora ao carro, estou prestes a ir para à tua casa. Posso…?). Foi uma peça interessante, demasiado interessante para uma pessoa ignorante. E tu? Que tens feito durante a minha ausência? Nada demais, respondeu. Eu não sei fazer nada de especial. Dei-me ao trabalho de beber uma garrafa de água e de escrever o teu nome num papel. Meti-te a garrafa na mala, viste-a? Não, respondi. Não encontrei nenhuma garrafa durante a viagem. Não te enganaste? Não, respondeu. Tenho a certeza que foi uma garrafa de água, e tenho a certeza que escrevi o teu nome num papel até me cansar de o escrever. Como queiras, disse. Vou agora para casa, está tudo bem, não te preocupes. Espera! Exclamou. Voltaste a olhar para o meu anúncio? Aquele que está à porta do teatro? Eu gosto quando olhas para ele. Sim, voltei a olhar para esse anúncio. Está igual. Talvez o sol tenha roubado um pouco a cor, mas continua igual. O teu nome destaca-se na mesma, não te preocupes. Até já. Até já, respondi.

viagem: diogo tavares

Sem comentários: