22.10.08

sou eu mesmo


Você é das que precisam de garantia. Quer saber como eu sou para me aceitar? Vou me fazer conhecer melhor por você (...) Olhe, tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras. Sou irritável e firo facilmente. Também sou muito calmo e perdôo logo. Não esqueço nunca. Mas há poucas coisas de que eu me lembre. Sou paciente mas profundamente colérico, como a maioria dos pacientes. As pessoas nunca me irritam mesmo, certamente porque eu as perdôo de antemão. Gosto muito das pessoas por egoísmo: é que elas se parecem no fundo comigo. Nunca esqueço uma ofensa, o que é uma verdade, mas como pode ser verdade, se as ofensas saem da minha cabeça como se nunca nela tivessem entrado?

(...)

Tenho uma paz profunda (...) somente porque ela é profunda e não pode ser sequer atingida por mim mesmo. Se fosse alcançável por mim, eu não teria um minuto de paz.

(...)

Bom, apesar de meu ar duro, que aliás vem também do fato de meu nariz ser tão reto, apesar de meu ar duro, sou cheio de muito amor e é isso o que certamente me dá uma grandeza, essa grandeza que você percebe e de que tem medo.

(...)

Meu amor pelo mundo é assim: eu perdôo as pessoas terem um nariz mal feito ou terem lábios finos demais e serem feias – todo erro dos outros e nos outros é uma oportunidade para mim de amar. Veja, não permito que ninguém mande em mim (...)

(...) ninguém pode fazer uso do que os outros são (...)

uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: Clarice Lispector

9.10.08

uma carta




Minha noite é como um grande coração batendo. São três e meia da madrugada. Minha noite é sem lua. Minha noite tem olhos grandes que olham fixamente uma luz cinzenta filtrar-se pelas janelas. Minha noite chora e o travesseiro fica úmido e frio. Minha noite é longa, muito longa, e parece estender-se a um fim incerto. Minha noite me precipita na ausência sua. Eu o procuro, procuro seu corpo imenso a meu lado, sua respiração, seu cheiro. Minha noite me responde: vazio; minha noite me dá frio e solidão. Procuro um ponto de contato: a sua pele. Onde você está? Viro-me para todos os lados, o travesseiro úmido, meu rosto se gruda nele, meus cabelos molhados contra as minhas têmporas. Não é possível que você não esteja aqui. (...) Meu corpo, esse azarão mutilado, quer esquecer-se por um momento no seu calor, meu corpo pede algumas horas de serenidade. (...) São quatro horas da madrugada. Minha noite me esgota. Ela sabe muito bem que você me faz falta e toda a escuridão não basta para esconder essa evidência. (...) Minha noite quer ter asas e voar até onde você está, envolvê-lo no seu sono e trazê-lo até onde estou. (...) O silêncio ouve apenas as minhas vozes interiores. (...) Você me faz tanta falta. E suas palavras. E sua cor. Logo o dia vai raiar.

cidade do méxico, 12 de setembro de 1939: Frida Kahlo

6.10.08

1912


O caso era que Tônio amava Hans Hansen, e já sofrera muito por causa dele. Aquele que mais ama é o subjugado e tem que sofrer. Esta lição simples e dura sua alma de catorze anos já recebera da vida. E ele era de um feitio que guardava bem tais experiências, tomava nota interiormente, por assim dizer, e, de certo modo, tinha sua alegria nelas, sem obviamente, dirigir-se por elas e delas tirar proveitos práticos.

(...)

“Por que sou tão esquisito, em conflito com tudo, em desavença com os professores, e estranho entre os outros meninos? Olhe os alunos, os bons e os de sólida mediocridade. Não acham os professores engraçados, não fazem versos e só pensam em coisas em que a gente afinal pensa e que podem ser ditas em voz alta. Como se devem sentir bem comportados e de acordo com todos! Deve ser bom... Mas que passa comigo? E como tudo terminará?”

Este procedimento de observar-se a si mesmo e em sua relação à vida desempenhava um papel importante no amor de Tônio por Hans Hansen. Amava-o primeiro porque era belo; mas depois porque lhe parecia, em todos os pontos, seu oposto e contraste.

(...)

Poder-se-ia, com alguma audácia, chegar à conclusão de que é preciso ter estado em alguma prisão para se tornar poeta.

tônio kroeger: Thomas Mann